quinta-feira, 30 de junho de 2011

PARTE III

Estaciono devagar. Estão poucos carros. Bom sinal. Não quero ser visto. Uma pequena paragem não fará mal. Sempre me distraio. Botas na terra batida. Já quase que não têm cor de tanto o pó. Estão tão velhas. Estão como eu. Irreconhecíveis, sem cor.

Entro de cabeça baixa, sento-me e olho em redor. Só velhos solitários como eu. Alguns bêbados costumeiros. Um uisque. A música começa. Algo se passa. Ela aparece. Cara bonita mas gasta. Curvas. Boas curvas. Lingerie gasta também. Estamos bem um para o outro: tu de lingerie gasta e eu de botas velhas.

Cada batida é um espasmo naquele corpo curvilíneo. Ela contorce-se toda. Agarra-se ao varão e gira. O cabelo brilhante acompanha o movimento. Já vi aquelas curvas em algum lado. No teu corpo, é isso. Já as vi lá. Sempre tiveste um corpo fabuloso. E era meu. Cada centímetro da tua pele era meu e eu podia cheirá-lo, podia prová-lo, podia guardá-lo. Era meu.

Ela não é como tu mas por agora serve. Preciso de pensar noutra coisa sem ser em ti e naquele estúpido concerto. Dou uma passa no cigarro com quase metade da cinza empoleirada à espera do cinzeiro. Perco-me nos pensamentos e acabo por perder o cigarro também. O álcool escorre devagarinho pela garganta. Já estou quente. Quase que te consigo ver a dançar naquele velho palco.

Dança, dança para mim. Chama-me. Olha para mim. Eu ficava tantas vezes quieto a ver-te dançar. "Nem uma palavra, nem um toque", tu dizias. E eu, obediente, aguentava a muito custo. Era uma tortura. Como eu queria tocar nessa pela quente, como eu queria beijar esses teus lábios, esse pescoço, esse peito. Deitar a minha cabeça no teu umbigo, apertar esse teu rabo empinado e provocar-te nas virilhas. Tudo. Tudo em ti eu queria saborear, queria guardar para mim. O teu sabor nos meus lábios. Nunca mais o senti desde que desapareceste. Deste-me tudo, tiraste-me tudo.

Ela parece uma serpente. Agarra, desagarra, balança e olha para mim no meio de toda aquela coreografia. Acho que simpatizou comigo. Até que é bem engraçada. Cala-te! Deixaste-me, lembras-te? Por isso não tens qualquer voto na matéria. Põe-te a andar. Vai-te embora. Quero divertir-me hoje. Desaparece. Ela até é parecida contigo por isso...

A música acaba e as poucas almas paradas do bar aplaudem. Ela sai mas antes olha-me uma última vez. Óptimo. Quer dizer que já não tenho que fazer muito. Outro uisque, por favor. Outro cigarro. Fumo. Não sei quanto tempo passou mas de repente volto a vê-la já vestida ao pé do balcão. Cumprimenta os bêbados esquecidos. Sem dar conta, tenho-a à minha frente sorridente. "Velhos amigos" diz apontando para os homens perdidos pelo bar. Espero. "Mas tu não tens nada de velho, muito menos de amigo" remata. Semicerro os olhos. Puxo o cigarro. "Não podia concordar mais contigo. Não tenho nada de amigo."



[projecto em desenvolvimento]

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