quarta-feira, 1 de junho de 2011

O espaço em falta



Às vezes dou por mim a pensar em todas as coisas que ficam por dizer, como se estas se tornassem em algo palpável e nítido, quase físico. Pode parecer um conceito estranho, mas cada vez mais tenho a sensação que o não dizer ou não fazer ocupa mesmo um espaço, como se o vazio fosse de facto algo bastante denso, que ao fim de algum tempo já nem é possível contornar.

Esta ideia é um misto estranho entre as minha próprias teorias mentais, a conversas que vou tendo com as pessoas à minha volta, e alguns reencontros inesperados. A verdade é que também estive a pensar bastante no que disseste naquela nossa conversa tardia e os ecos disso ainda cá estão. Sim, estas conversas fazem-me sempre bem, com um copo a acompanhar na mão e mesmo com o frio da noite e uma voz manhosa como a minha estava nesse dia – mas desta vez senti (pelo menos da minha parte) que foi quase necessário. Eis o que achei mais interessante: a importância de dizermos as coisas certas no momento certo.

Não só o arriscar a dizer a uma pessoa que a amamos de facto, ou o salientar algumas verdades curtas (mas bem ditas) mesmo que estas venham anos mais tarde – mas também ter uma certa coragem para falar de forma completamente aberta (quase crua) entre nós. Confesso que pode parecer um bocado injusto, porque só digo o que realmente penso e sinto sobre uma pessoa quando me preocupo realmente com ela ou a conheço minimamente bem. Com a maioria das pessoas reservo apenas simpatia, ou pelo menos cordialidade: mas raramente honestidade pura e bruta. Por isso admiro a capacidade de quem tem “tomates” para dizer aquilo que é simples mas acertado no contexto do momento.

Por isso não pude evitar pensar em algumas coisas que gostava de ter dito a certas pessoas, noutros tempos e noutras situações, mas entretanto esse contexto perdeu-se. Não é ressentimento, não de todo, mas não gosto da sensação de “pontas soltas” e nunca fico completamente em paz comigo quando isto se prolonga. E então a coisa mais curiosa aconteceu.

Estava eu a pensar nessa pessoa quase distraidamente, no dia anterior, e no que gostava de lhe ter dito, e eis que volto a encontra-la precisamente hoje. Já não a via a algum tempo, de vez em quando cruzamo-nos rapidamente e trocamos alguma conversa, mas é geralmente algo mais circunstancial e estranhamente esse tema nunca fora tocado. Então, quase que encaminhado, a velha questão veio à baila sem eu a ter puxado e a conversa alongou-se, relembrámos algumas coisas, comparámos, comentámos e até estendemo-nos à metafísica. Que estranho, não éramos certamente as mesmas pessoas de alguns anos atrás; acho que crescemos, o que quer que isso signifique, mas já se nota. Acima de tudo, eu disse-lhe aquelas coisas que na minha cabeça precisavam de ser ditas e ele disse-me o que estranhamente precisava de ouvir: desculpa. Provavelmente não precisava de o dizer; mas fê-lo e de facto fez toda a diferença, mesmo com estes anos todos de espaço.

Agora a coisa parece relativizada mas não fosse encontrá-lo de raspão no metro e falar com ele precisamente sobre aquilo, mais uma coisa ficava a pairar no ar. Por isso lembro-me deste caso, de situações mais banais e até de umas conversas que tive com outra amiga minha que, desesperada, está também eternamente à espera da reacção de uma pessoa de quem muito gosta. Mas se ao menos conseguíssemos dizer as palavras certas.

Às vezes imagino que todas essas coisas que ficam por dizer são como uma planície imensa num cenário pós apocalíptico cheio de objectos amontoados, ou como um quarto extremamente desarrumado. Sou extremamente visual, por isso de vez em quando dá-me para isto. De certeza que existiam uns quantos “eu comi a última fatia de bolo”, “sim, voltei a chumbar naquela merda” ou “odeio este vestido que me ofereceste ao ponto de comer as minhas próprias peúgas” a um canto. Mas quantas pilhas e pilhas não ocupariam os “obrigado”, “desculpa”, “sinto a tua falta" ou “amo-te” deste universo?


Adrien Broody no clássico O Pianista, 2002.

1 comentário:

  1. Texto brilhantemente escrito. Palavras colocadas em cada frase com uma grande mestria. Adorei ler cada frase. Adorei. Que sensibilidade. E que bem captado.


    p.s.-a vida é estupidamente irónica, não é? :) encontrá.lo depois da conversa.

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