terça-feira, 27 de março de 2012

O (delicioso) culto da trivialidade



Cada vez que aqui venho torna-se quase como entrar num velho quarto, meio empoeirado, mas que traz consigo uma boa sensação de familiaridade e de casa quando realmente me demoro. Essa sensação interessa-me particularmente e dou por ela de forma inesperada e nas mais pequenas coisas. Por exemplo o que me motivou a escrever neste preciso momento (e a sair um pouco do marasmo do meu silêncio e do sono que me ia apanhando), foi uma boa chávena de chá quente nas mãos, os acordes do piano de uma música que tanto me fez companhia que já quase a esquecera e, estranhamente, os apontamentos sublinhados ao meu lado.

Não me perguntei porque é que apontamentos sublinhados me dão também algum conforto deslocado mas a verdade é que sinto que, nestes últimos anos, tudo o que passa por mim é passageiro e filtrado por um ecrã. Os ecrãs dão-nos o espaço quase infinito e deles já não nos separamos (não fosse o paradoxo de estar a escrever para um agora), mas são frios e não transportam consigo aquela pequena beleza frágil e o universo táctil do papel. No papel sinto que não só me posso demorar como também sou convidada a faze-lo, a mergulhar um pouco mais fundo e não apenas raspando a superfície - mesmo que o papel em causa seja algo tão banal como fotocópias de trabalho a ler (e o apontamento mental que deveria estar a fazer uma recensão crítica e não isto; mas acho que no fundo ambas se ajudam mutuamente).

Coisa estranha esta da familiaridade do trivial, é um sentimento que me atrai cada vez mais pela sua singularidade. No outro dia ocorreu-me que a verdadeira cumplicidade é como “voltar a casa. Fiquei a saborear ainda durante algum tempo esta ideia, porque realmente sabe bem voltar a casa. Seja por um delicioso reencontro e conversa posta em dia (tão bom e essencial nas pequenas coisas), pelo abraço/conforto/equilíbrio pleno do fim de tarde ou pelo meu serão de fim de tarde com chá quente, música redescoberta e apontamentos em papel. Eis o meu pequeno momento de culto pelos momentos triviais que também o merecem de vez em quando em voz alta.

Isabella Rossellini na imagem.

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